...
Sinto tantas vezes que não marcho ao mesmo ritmo
E não marcho na mesma direção que o resto das tropas
Como um desalinhado...

João Miguel, O Pássaro do Sul

12/09/2010

Eternidades


Não sei se era ainda manhã...

O sol estava bem alto e a luz era intensa.
Duplicava quando se reflectia na areia branca, mil vezes lavada e remexida, pelas mãos fortes das águas, que tanto lhe batiam enraivecidas, como lhe acariciavam a pele dourada e brilhante.

Mas era tão irrelevante o tempo e as suas medidas, como nos era irrelevante a presença de mais alguém, queriamos que o tempo pudesse parar ali.
Ali, onde eramos prolongamento e complemento um do outro, onde o meu sangue partia do seu coração me irrigava os pulmões e a corria toda, passando a jorros através da palma da minha mão para a sua.
Onde as fibras se misturavam e só eramos um.
Pensávamos querer a paragem do tempo. Sabiamos até o momento exacto.
Pararia no segundo preciso em que os nossos pés se enterrassem na areia, aquando de mais uma carícia feita pelas águas, o instante em que o arrepio que nos subiria os corpos , nos faria mergulhar nos olhos um do outro, o momento em que essa imensa testemunha, finalmente baptizaria aquele sentimento que nos unia, em que finalmente nos ungiria com o sal do mundo.

Mas e depois? A sede era tanta! Todos os sentidos queriam mais. A sublimação da magia daquele momento, e o extremo perfume duma felicidade inexplorada, permitiriam a paragem?
Não somos feitos de tecido fraco, não somos de material que não se deve mexer, tocar ou desfaz-se.
Sempre fomos de fibra louca, de tecido cru, com borbotos e alguns traços mais largos que deixam passar o sol para dentro de nós, que nos deixa respirar, que nos mantem vivos efectivamente.

O tempo realmente parou naquele momento e aquele momento era eterno, mas a correr pela praia partimos, na busca de mais eternidades para o nosso baú.

Para nos enriquecermos do tesouro de estarmos vivos para nós...

João Miguel, O Pássaro do Sul

4 comentários:

Anónimo disse...

O texto é de uma riqueza de detalhes assombrosa, meu anjo, daqueles detalhes que só se vêem por dentro...
E fica ainda mais sublime quando visualizo nitidamente a imagem de que fala ele.

És lindo, sabes?!

Amo-te-nos!

Anónimo disse...

[...]

Cantando eu convoco um certo homem. Um apanhador de pérolas, vasculhador de maresias. Esse homem acendeu a minha vida e eu sigo por iluminação desse sentimento. O amor, agora sei, é a terra e o mar se inundando mutuamente.
...
Minha vida se tornava tão densa que o tempo sofria enfarte, coagulado de felicidade. Só esse homem servia para meu litoral, todas vivências que eu tivera eram ondas que nele desmaiavam.

[Mia Couto]

helenabranco.poet@gmail.com disse...

...em cada sopro nos tocamos
palavras d' urgencia caminhando
e o mundo veio
ao encontro do assombro consentido e nós desmedidos arrulhamos...

helenabranco

A João e Katyuscia

Branca disse...

E quando o amor acontece a terra e o mar param naquele momento...
Texto maravilhosamente lindo e comentários também.

Um beijo grande para vós, meus queridos.
Branca